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Mostrando postagens de janeiro, 2017

22:17 - O Sol que espera a noite*

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Quadro: Woman with a Parrot. Gustave Coubert. MetMuseum. O sol ainda estava longe e os primeiros raios da manhã já faziam suas saudações às aves próximas quando eu ainda estava acordado, olhando para os vidros embaçados da janela e as cores confusas da aurora. Meus olhos não cansavam de olhar para o nada, cujo plano de fundo era uma mistura de cores, visões e pensamentos, próximos e cortantes. Andei descalço na rua quando a chuva caiu e saltei sobre os montes quando apenas uma leve garoa ameaçava aprofundar ainda mais os poços de lama que há nas margens de uns caminhos tortuosos. Não vi flores sobre os parapeitos. Não vi o sorriso no vidro do carro. Não vi você pertinho, segurando a minha mão, dizendo que daqui a pouco estaríamos molhados e sujos por andar tanto e sem rumo. Caído sobre os braços, em pernas preguiçosas, a cabeça voou, sobrevoou as cidades, atravessou o tempo e destruiu as barreiras, do som e do impossível. E planou sobre todos os lugares e sobre lugar nenhum,...

22:05 - deus*

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Arte: Statuette of Isis and Horus. 332-30 B.C. MetMuseum.  Não se escreve aquilo que se aconselha. Nem se aconselha aquilo que não viveu. A vida deveria dar-me o mundo e suas riquezas. O universo deveria matar-me e fazer-me renascer em todos os milhares de anos. A Igreja deveria tornar minhas falas preces aos injustos sonhadores. E ninguém deveria dar-me tudo, no mesmo espaço de tempo em que o tudo é-me oferecido no silêncio do meu abrigo. Minha atenção é a tensão entre o fazer de tudo e o não fazer nada. Já não quero impressionar a ninguém, nem a mim. Minha paixão tem nome, mas o corpo recusa-se a aceitar que o impossível tornou-se possível no mundo terreno. Minha alma foi ao inferno buscar chocolate quente, de puro cacau, enquanto meu corpo ficou no céu, paquerando as ninfas. Minha casa é um bordel durante as noites e um mosteiro durante o dia. Minhas roupas se transformaram em retratos de luxo e minha pele reveste apenas um veículo. No ser arte de um Ser, acabei sen...

22:00 - Mentiras queridas*

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Escultura: Marble Statue of a member of the imperial family.  Met museum Dir-te-ia sobre como o sofrimento adentrou minha casa e instalou-se em meus melhores recantos, mexendo em tudo e pondo continuidade naquilo que não havia mais caminho a ser seguido. De como rebuscou retratos sinceros do meu rosto ao amanhecer da noite turbulenta de sonhos em que se foi lembrando bons momentos. Dir-te-ia das vezes em que a dor acompanhou aquele sofrimento insano e fez verter, de olhos secos e duros, gotas de um amor indissolúvel; de um estado sobre-humano no qual nada havia além da vontade de ser feliz. Dir-te-ia que a felicidade é passageira, simples, concreta e que, se eu pudesse, não voltaria a ela, pois, tal como uma droga, ela vicia e é roubada por uma leve mão amada e, então, a agonia aparece e mostra que o tudo nunca existiu, o amor não passou de uma mentira e o sorriso foi apenas para convencer de que o controle estava mandando, não a emoção. E que, mesmo assim, foi bom. Di...

21:30 - Alter-ego*

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Quadro: The Sofa. Henri de Toulouse-Lautrec. MetMuseum Alimentava-me de suas conquistas como se elas fossem o mais nobre manjar. Respirava seu perfume para que os odores do mundo não ofuscassem seu leve passar entre rosas e gramas. Se suor foi engarrafado e bebido nas noites quentes e, nas frias, destrancava seu calor para um adormecimento tranquilo. Corrigi o mundo com toques de simplicidade, música, poesia, sorvete e publicidade – de beijos, atos, paixões. Distorci tudo como quem se desfaz de linhas envelhecidas tornando os recantos mais belos, apesar da poeira. E quando pensava que não podia fazer mais nada, surpreendi-me refazendo-me, reciclando-me, recriando-me sob todas as perspectivas existentes entre um ponto em uma nuvem cor de chumbo e o mar azul-esverdeado. Transformando-me em milhares de pessoas, tentei ultrapassar a barreira do possível, do tempo e dos desencontros. E para cada personalidade nova recém-criada também nascia um vício, um amontoado de atos destrutivo...

21:01 - A loucura está no amor*

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Quadro: Wheat Field With Cypresses. Vicent Van Gogh. 1889. MetMuseum Um riso incontrolável inflamou-o peito a fora, brotando nos lábios e traduzindo uma explosão de felicidade louca e sem sentido, explicada apenas pela loucura e pela ausência de sentimentos, na estupefação da descoberta. Esperava gritar, no silêncio da dor, chorar, magoar-se, morrer uma segunda morte em vida em que se levantar da cama é simplesmente a tarefa mais difícil a ser desempenhada. E, no entanto, sorriu. E sorriu por que viu. Sorriu para expressar um estado de espírito em que nada é capaz de abalar os alicerces de uma verdade sã, apesar de parecer louca, desregrada, incapaz. Sorriu para dizer a si mesmo que não importa: existe algo que não pode ser traduzido sempre, mas que está lá, esperando por uma brecha em ocasos, acasos e amores fabricados. Os lábios alargaram mais que um simples dizer de alegria; os lábios estouraram contra uma tristeza, contra uma forma agressiva de amar que oprime o coração at...