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Mostrando postagens de março, 2022

Sem avisos

Um dia eu vou sumir, não aos poucos como uma fruta que se parte em pedaços e é engolida sem pretensão. Será de uma vez. Súbito. Não, não é estado de tristeza ou depressão que inflama essa afirmação. É um doce sabor de quem há de experimentar um arrebatamento cataclismico. De repente, não mais que de repente (como uma vez escreveu o poeta) eu sumirei em meio à multidão, sem ser notado, sem ser perturbado, sem alarde. E ficará, se alguém algum dia lembrar, como escreveu outro poeta, versos A um ausente. É só o que restará de mim pelas mãos de outro que me antecedeu. Um dia, eu sei, eu vou sumir.  E como não se destroi um império em um único dia, assim eu vou me fragmentando, acostumando os outros com pequenas ausências, silêncios enormes. E onde eu vou parar  ninguém sabe, nem eu, nem você, Olorum, de certeza, mas ele não vai contar. E vou viajar, como o Belchior fez duas vezes.

À francesa

Poucas sensações são tão boas quanto sair à francesa. Em um momento você está em uma empresa e, sem que ninguém se dê conta, você está rumando por outros caminhos. Em um instante você pode estar assistindo a uma aula presencial e, no outro, poderá está caminhando na orla sem que ninguém tenha percebido a mudança, além de você. Assim você poderá mudar de cidade, estado, profissão, relacionamentos tóxicos e destrutivos. Assim você poderá mudar, com ou sem medo. Sempre à francesa. Com requinte. Sem desgaste. Sempre em frente.

Trouxismo brasileiro

Há quem diga que o peso, da vida, seja mais leve quando é compartilhado. E pode ser que o peso seja mais fácil de carregar quando mais de uma pessoa faz a força necessária para levantá-lo e carregá-lo. Nunca vi isso acontecer, em nenhum, com  ninguém. E se nada é fácil para o brasileiro pobre, assalariado, menosprezado ainda que muito instruído, por que esperar que o peso de viver entre ruas sem saneamento básico e uma sobrevivência mal paga por empregos estafantes seja leve, ainda que compartilhada? Talvez o problema seja que aprendemos a romantizar a pobreza, as carências e a sobrevivência, crendo que sofrendo estaremos expurgando males dessa e de outras vidas. Uma ilusão conveniente para os donos do capital e de igrejas. Sozinhos, os brasileiros seguem o ritmo de suas reclamações sazonais, fazendo más escolhas, destruindo a si quando nada mais resta à fome implacável da destruição moral, material e espiritual. Quem sabe, em alguma coisa perdida no tempo e no espaço, o brasileiro...

Eu não sei

Como em tantas outras vezes, eu não sei. Simplesmente finjo saber de mim, encontrar-me entre tantas versões desorientadas e limitadas de mim é o meu desafio, mas eu não sei qual é a certa.  E embora o não possua uma conotação negativa, principalmente se repetida de tantas e diversas formas, nenhuma outra expressão é capaz de substituí-la. Eu, por outro lado, sou substituível, inexpressivo. Alimentos, notas, títulos, desejos, faltas, ausências, sentidos, sentimentos - tudo em ameaça constante que me oprime como o peso das palavras sobre a bolsa de valores. E eu não sei para onde ir, como ir, por quê ir. O que eu sei é que meu tempo é contado, mesquinhamente pingado no meu vaso, com certos toques de abusos e reduções. Como eu, quantos, neste exato momento, estão assim? Eu não sei. Eu não sei de mim.

Entreolhar temporal

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Foto: CCBS-UFS. Rafael Rodrigo Marajá. Percorri esse caminho quando não entendia nada e só o que tinha era um desnorteamento entre o estômago e novos conceitos.  Encontrei pessoas, nesse mesmo caminho, que agregaram minutos de distração e outras, cheias de falsas esperanças, sentaram comigo para um suco, penosamente pago. Eu fiquei e elas se foram. Não mais as reconheço. E eu mesmo não sou o mesmo. Fiquei ali, no entrocamento entre o passado e o presente, com os bolsos vazios, o pensamento perdido e os olhos fixos nas folhas. Fiquei, entre motivos, porque não havia para onde ir e nem uma marquise para me abrigar do sol, da chuva e do desalento. As estações passaram, as pessoas passaram, o tempo passou, o clima mudou e eu, errante, fiquei. Ainda estou e me encontro a cada quinze dias, olhando para as plantas que crescem, sentindo o cheiro do formol e cheio de desafios a superar para manter o mínimo. Ainda sou o mesmo, sentindo-me encardido, ignorante e perdido.  Eu ...

Dia 03

Estamos vivendo em fatias, esperando. Já esperamos tanto que nem nos lembramos mais o que estávamos esperando. Só continuamos por hábito, triste costume. Agora que passou o Carnaval passamos para o estado de inércia, uma espera que parece que se renova a cada dia. Ali na frente, mais cedo, o homem, bêbado, derrubou a mulher da cadeira propositadamente e começou uma guerra de agressões físicas e desculpas, nem sempre da parte ofendida. Nada novo depois de duas cervejas e um feriadão. Eles, o casal, esperam. Do lado, mais perto, a grávida espera o marido, ouvindo o terço das 18h e, parecendo uma dramaturgia realística inspirada na sétima arte, o marido sempre grita pedindo avisando que chegou e ela joga a chave. Parece uma cena de A Vida é Bela, aquele filme emocionante. Eles, o jovem casal que ainda não foi destruído pela rotina, esperam. Embaixo, os jovens saem em suas descobertas, deixando a solidão de vidas escravizadas pelo comodismo e pela idolatria a homens. Embaixo, eles esperam....