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Mostrando postagens de novembro, 2022

Toda água do céu

Não foi repentinamente. Foi aos poucos. Um incômodo aqui, uma palavra deslocada ali, uma falta de expressão na foto, outra ausência na agenda.  Foi nos detalhes e no todo da rotina que se foi mudando e desconstruindo. Um dia sem sal na Semana. Depois uma semana desgostosa no mês. Seguiu-se um mês no ano de destemperos. Foi assim, com anúncios sem alardes, que foi se fazendo a mudança. Dia desses, as nuvens chegaram com o peso do casal do Dendê. Uns correram para desligar os aparelhos elétricos enquanto outros cobriam os espelhos. Uma correria esperando toda a água do céu despencar. Foi isso.  Desse jeito. E a água despencou.  E o que ficou depois de tudo nem foram os escombros. Foi só a preguiça de recomeçar em meio à beira.  Tem gente que é só a beira mesmo - como disse o poeta - só a beira do mar.

Nu

E eu vou dormir nu, como aquele personagem de Fernando Sabino - embora também gostaria de sair por aí, diferente dele, pagando de louco despido. Não vou dormir nu porque vi em alguma rede social que é "saudável" ou "esotérico" e sim porque no encarceramento voluntário das quatro paredes do meu quarto não necessito de roupas que me limitam ao conceito de outrem e nem preciso estar minimamente "apresentável". No meu quarto os meus pelos podem cair sobre a cama, no chão, embolar nas cobertas e eu posso largar-me ao delírio de um mundo sem preocupações, mesmo que sérias. Eu não sou o que minhas roupas dizem. Eu não sou as cores que destoam e se combinam. Eu não sou nada além de pele, ossos, músculos e, de certo modo, flacidez.  Eu sou mole devido ao meu organismo e pedra no intelecto (embora preferisse também na ereção automática e autônoma não apenas nas manhãs). Nu. Vestido de pelos e despido de pudores. Eu sou o que outrem reprova sob a luz dos holofotes da...

Troca de pele

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A minha pele está secando e caindo como certos répteis que rastejam por aí. Essa pele, caindo, são os resquícios de uns dias vividos sem precaução, embora com uma certa preocupação que se espalhava pelo corpo como grãos de areia da praia esquecidos pelo banho de água doce. Agora, vendo o efeito do sol sobre a minha pele, vejo os meus caminhos e as minhas faltas, que se despedaçam ao primeiro toque de hidratação profunda, pelos recantos do quarto e do teclado. A praia, casa de todos, ameniza e acalma o corpo porque nada se pode fazer diante do movimento das ondas. E eu sou jogado para a frente e puxado como uma marionete nessa nossa casa. E decido, acima de qualquer decisão, que o mesmo não acontecerá fora dos líquidos estares.

Inverso estar

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Quando mais queremos a escuridão do quarto, sem barulho externo, sem aperto de mente, sem alma viva por perto, mais nos afastamos desse objetivo em estradas, trânsito rastejante, diálogos, compromissos entediantes. O sol do Território baiano do Sisal se escondeu assim como fez o não-entusiasmo que já existia no cotidiano, os amores outrora proibidos, as paixões em cinzas diuturnas, as esperanças últimas, o paladar da vida. Na estrada, deixando para trás estilos e vidas diversas - cansaço imenso -, com os pés disputando espaço com os insumos da vida e o calor impregnando o ar com a voz de Pablo, avisando que "sempre vai ser eu a meia sena da virada que você perdeu". Entre o brega, a sofrência, o calor, o pouco espaço, o querer estar isolado e a companhia em forçosa alegria, a estrada vai se transformando em pedágio e o horizonte direito em litoral. Quanto mais queremos, menos temos, menos somos, menos estamos.

O Mal

O mal, figura abstrata que dizem devorar a tudo e a todos, parece servir aos desejos de duas ou três pessoas em cada lugar onde quer que exista gente "feliz".  O mal que quer destruir a vizinha, o colega de trabalho, o pastor, o coroinha, um empreendimento, uma carreira. O mal encoleirado e que existe à mercê da humanidade está preso e faminto em cada habitação.  O mal, personificação do inimigo. Porém, qual inimigo? Inimigo de quem? O mal, generalista e onipresente, são os outros e nós mesmos; é a nossa vontade invejosa, o nosso mal disfarçado preconceito, nosso sexo amedrontado, nossas armas religiosas e nossa pouca profundidade.  O mal é a vergonha de si e a não aceitação dos caminhos e escolhas alheias. O mal, o mal mesmo, existe porque o bem existe e toda dualidade exige, por definição, dois lados antagônicos. O meu mal está aqui, babando, esperando para brigar com o seu.