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Mostrando postagens de outubro, 2023

O vivente da barra da manhã

 Ultimamente o sol nasce entre dizeres e brisas à rua. Às vezes com a presença de desvalidos sob marquises e, em outras vezes, com o caminhar lento de felinos perscrutando os resíduos da noite comercial anterior. Hoje mesmo, quando a barra da manhã já apresentava os sinais de um colorido primaveril e escorpiano, uma criatura mal-humorada rompeu pela rua, chutando o lixo, xingando os animais vagabundos, omitindo-se a saudações. Uma criatura que deve ter se revoltado com a cena matinal, nada explícita, menos ainda implícita. Talvez a revolta seja por uma vida inteira de trabalhos humilhantes e de um cotidiano mecânico, quadrado, ditado pelas convenções sociais e religiosas. Faltando-lhe carnes sobre os ossos, sobrando-lhe amargor, quem nunca foi, um dia, como tal vivente? Um dia qualquer. Uma manhã nascente não costumeira.  Sem sexo, sem explícitos, faltando implícitos - um dia na viada vida periférica que se acomoda entre quereres e transtornos.

Automediocrização humana

  É possível entender o medo das pessoas em relação à Inteligência Artificial. Capaz de criar imagens, escrever textos científicos referenciados, e escrever as citações na ordem em que surgem no texto, a Inteligência Artificial, já presentem em diversos sites tem se tornado uma ferramenta e uma ameaça àqueles que veem na facilidade das Máquinas um caminho sem esforço e sem dores de parto dos trabalhos, hoje humanos. A quem pertence os direitos autorais? Até onde vai a "criatividade" da Máquina? Até quando ser humano será necessário? Talvez a questão não seja onde o homem terá lugar. Mas até que ponto este se deixará mediocrizar pela Inteligência Artificial. Para exemplificar o que, para alguns, ainda não se situou nessa discussão, segue abaixo uma crônica escrita pela Inteligência Artificial. Julgue-a. "Era uma manhã ensolarada em São Cristóvão, uma pequena e charmosa cidade no estado de Sergipe. O céu azul contrastava com as casas coloridas e históricas da região, crian...

O assunto e o motivo

 É sempre sobre domínio e poder.  Não é sobre a imortalidade da alma, um paraíso - aquele lugar idealizado e idolatrado. Não é sobre um possível amor ao próximo - se tal amor e tal próximo sempre são selecionados, direcionados, excludentes. Não é sobre uma paz com animais selvagens e ferozes - se é o homem o mais feroz e atroz dos animais. Não é sobre continuar a humanidade em famílias com gêneros diferentes e crianças saudáveis - se é essa concepção que abandona bastardos à própria sorte em rodovias e esquinas diversas.  Não é sobre ilusões que remetem a um falso deus, morto em toda porta comercial.  É sobre o poder político e econômico. É sobre dominar o outro até mesmo onde lhe é mais íntimo, pessoal e particular. É sobre retirar a humanidade de infelizes vítimas de estruturas sociais degradantes e crueis.  E nada além disso. 

Além da fronteira do amor romântico

 Há eventualidades que o amor romântico ocidentalizado jamais alcançará. Questões básicas de não colonização do outro que foge completamente aos axiomas de uma sociedade pautada na posse, na propriedade e na dominação do outro e de suas preferências.  Dono de si, o outro dispõe de vontade que, às vezes, é soterrada em escombros de deveres, afazeres, aparências e quereres alheios. Extirpado de sua verdadeira natureza, esse outro, não raro e por períodos consideráveis de tempo, acaba esquecendo quem é e qual seu papel no contexto social no qual está inserido. O amor romântico ocidentalizado, onde o sexo tem regras rígidas e paulatinamente ensinado indiretamente em escolas e hipocritamente renegado em espaços pseudo religiosos, é uma flâmula hasteada em pleno mar seco, onde a vida é incapaz de prosperar.  Em certas madrugadas, onde nem mesmo o homem consegue inventar um deus onipresente e mítico e as fronteiras desse amor romântico acabam, somente as eventualidades de uma vi...

Da inanição de afeto

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Arte: Stole. first quarter 19th century. Met.   Não é que perdemos o jeito de dar, receber e cultivar afeto. Simplesmente não sabemos mais - se é que algum dia, de fato, tivemos a chance de estar em estado de afeto. Antes teve aquela época em que pessoas muito violentadas, física e/ou psicologicamente, criam em um pseudo afeto por meio das redes sociais. Depois, ou conjuntamente, passamos a publicar certas demonstrações de afeto. Agora, contaminados pela falsa ilusão promovida pelas redes sociais, estamos armados contra o que chamamos de afeto.  Ao menor sinal, sumimos. À menor gentileza ou cortesia, desafiamos a um sanguinário duelo quem ousa ser gentil ou cortês na vida real - não dá tempo para fotografar e postar.  O afeto tornou-se um dos demônios católicos que assedia sem provocação. E seguimos um caminho pedregoso e espinhento que a nada e a ninguém protege.  Estamos áridos, morrendo por dentro, sem sangramentos, sem feridas expostas, sem marcas visív...